A palavra mística, originalmente, remete a mistério e geralmente é associada à uma conotação religiosa, espiritual e até ao misticismo. Na Agricultura Familiar e em outros movimentos sociais populares, esse conceito, no entanto, pode ser ampliado.
Segundo Ademar Bogo, pós-doutor em Filosofia, “mistério para a mística é saber a razão porque na luta coisas extraordinárias acontecem.” Esse é ponto fundamental que caracteriza a mística para os movimentos populares: um instrumento de formação política que anima a militância para a luta.
Mas não apenas. Existem outros conceitos fundamentais que representam a mística para agricultores e agricultoras familiares. Neste conteúdo, vamos explicar em detalhes o que significa a mística para a Agricultura Familiar e como ela impacta nos movimentos, além de trazer três exemplos de dinâmica.
O que é mística?
Segundo o dicionário Oxford de Língua Portuguesa, mística significa “conhecimento ou estudo do misticismo”, além de “tendência para a vida religiosa”. Se olharmos para a etimologia, o termo vem do grego mystikós e myô, que significa, de modo geral, fechar os olhos e olhar para dentro.
Em outras palavras, além do sentido religioso, é possível associar a mística à concepção de desvendar verdades que estão por trás das aparências e da compreensão física dos sentidos. Ou seja, a mística ajuda a entender o que está escondido, “(…) é a procura de explicações e ao mesmo tempo o incentivo para viver o inexplicável.” (Bogo, 2010).
Segundo a agricultora familiar e coordenadora de Mulheres da FETRAF-SC, Dalvana Cordazzo, na Agricultura Familiar, a mística serve para unir homens e mulheres em torno de uma luta, “despertando os sentidos com emoções, seja através da música, do lúdico, da poesia, da mão na mão e do olho no olho, trazendo à tona o calor humano e sensibilizando o povo para uma causa”.
Quando a mística acontece?
Dalvana explica que as místicas nos movimentos populares normalmente são realizadas antes de reuniões, plenárias, seminários ou qualquer ocasião que envolva a união de pessoas em torno de uma causa, preparando e sensibilizando os presentes para o conteúdo que será abordado.
Para ela, a mística deve ser planejada de acordo com o tema tratado, “por exemplo, quando nos reunimos para falar das mulheres do campo, organizamos uma dinâmica relacionada à luta dessas agricultoras; algo que dialogue com seu cotidiano”. A ideia, portanto, é reforçar elementos específicos, como a união da classe, a cultura, a identidade, a resistência e etc.
Ornamentação
Como já abordamos, a mística pode acontecer de diversas maneiras, inclusive, com poesias, músicas e danças, por isso, ela não depende de adereços ou elementos concretos para acontecer. Por outro lado, a ornamentação pode ser um complemento valioso para a dinâmica. “No caso da Agricultura Familiar, usamos elementos da nossa lida, como alimentos, grãos, plantas, ervas, chapéus, fotos, ferramentas de trabalho, entre outros objetos”, comenta Dalvana.
Esses adereços, segundo a agricultora, servem para trazer a identidade da Agricultura Familiar, lembrando que a luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo pode e deve acontecer em todos os espaços.
Depois de entender o que é a mística para a Agricultura Familiar e quando ela acontece, vamos trazer alguns exemplos dessas dinâmicas. Veja a seguir!
Mística na Agricultura Familiar: 3 exemplos
Sabendo que a mística existe para trazer elementos que movimentam o imaginário e reforçam a luta ambiental, social e política, vamos citar rapidamente alguns exemplos de místicas que a Agricultura Familiar costuma trazer:
1. A mística do bambu
Parte de uma antiga lenda da filosofia Zen budista, as sete lições (ou verdades) do bambu também podem inspirar lutas populares, incluindo as causas da Agricultura Familiar.
Nessa dinâmica, as pessoas que participam se organizam em um círculo segurando bambus, de maneira que cada ponta fique unida, formando um grande arco. Todos entoam uma música sobre a Agricultura Familiar.
Após esse momento, o próximo passo é abordar as sete lições do bambu, que basicamente são as seguintes:
- Os bambus se curvam, mas não quebram: mostra a importância da resiliência diante das dificuldades e da humildade de se curvar para os mais experientes;
- Os bambus têm raízes profundas: lembra de que, para crescer, é fundamental honrar as bases, mas também que, quanto maior a raiz, mais difícil é arrancar;
- Os bambus não se criam sozinhos: sempre grudados uns aos outros, de longe parecem uma grande árvore, remetendo ao cooperativismo e à força da união;
- Os bambus não criam galhos: como vivem em comunidade, não é possível ter galhos, isso faz com que cresçam unidos rapidamente sem preocupações secundárias;
- Os bambus são cheios de nós: remete ao termo contrário de “eu”. Ter “nós” faz com que os bambus, mesmo ocos, cresçam fortes e não quebrem diante das intempéries;
- Os bambus são ocos: o vazio de si mesmo traz a percepção de espaços disponíveis para receber informações úteis, que ajudam a crescer;
- Os bambus crescem apenas para o alto: lembra que precisamos olhar para frente e focar sempre na evolução.
Por fim, o objetivo é associar a sabedoria do bambu à luta da Agricultura Familiar.
2. A mística do samba da utopia
Nessa mística, desenvolvida pela agricultora familiar e atriz de Seara-SC, Leila Cosmann, a ideia é trazer reflexão sobre os desafios da comercialização dos alimentos que saem do campo.
Para isso, cada participante recebe um pedaço de papel em branco e caneta. Os presentes, então, ouvem a música “Samba da utopia”, de Jonathan Silva, e escrevem a palavra que mais chamou a atenção na canção.
Num segundo momento, é lido um poema relacionado às feiras da Agricultura Familiar com o objetivo de convidar os presentes a serem “feirantes de palavras”, trazendo o seguinte questionamento: “na feira de hoje, que palavra você oferece?”.
Cada pessoa deve ler a sua palavra e colocar o papel em um cesto. Se alguém escreveu um termo negativo, como “tirania”, reformula-se a questão para palavras que não devem haver na feira.
Ao final, o objetivo é trazer todos os papéis que foram depositados no cesto e interagir com os presentes, levantando a reflexão sobre a importância das feiras livres e a influência desses espaços na construção cultural dos municípios.
3. A mística através das artes
Cada ocasião pede dinâmicas diferentes para inspirar a categoria e encorajar à luta. Em outras palavras, não há regras sobre o que pode ou não constar em uma mística. Por outro lado, é preciso que a ação atinja o imaginário e levante elementos que dialoguem com os presentes.
Neste sentido, a mística pode ser uma poesia declamada por um agricultor ou agricultora. Também, pode ser uma peça de teatro ou um esquete trazendo cenas do cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, ou, até mesmo, uma colcha de retalhos colorida em que cada participante interage escolhendo uma cor e comentando sobre o seu papel nesse grupo.
Outro exemplo bastante comum de mística envolvendo as artes são exposições interativas com elementos da Agricultura Familiar. Por exemplo, para falar sobre a estiagem, pode-se trazer terra e plantas secas, além de uma guarda-chuva com mensagens em destaque. “A regra é usar a criatividade e não impor limites à imaginação”, aconselha Dalvana.
Como você pode ver, a mística para a Agricultura Familiar incorpora a identidade dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, e serve também para lembrá-los de quem são e qual é o seu papel na sociedade.
A partir deste conteúdo, fica mais fácil compreender o que é mística e como essas dinâmicas movimentam a luta de agricultores e agricultoras, concorda? Agora, o que acha de conhecer sobre outro assunto que costuma despertar bastante curiosidade? Descubra três diferenças fundamentais entre Agricultura Familiar e Agronegócio.