Após 20 anos de negociações, no final de junho de 2019, o Mercosul (Brasil-Argentina-Paraguai-Uruguai) e a União Europeia chegaram a um acordo comercial sem precedentes. O CETA, o acordo entre o Canadá e a mesma UE, é comparativamente insignificante. Celso Amorim, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do Presidente Lula, observa que não é por acaso que a UE, de repente, insiste no acordo, no exato momento em que o Brasil e a Argentina estão economicamente e politicamente enfraquecidos. Será que pode ser esse o caso?
Posso me concentrar no Brasil? Muito recentemente, mais de 600 cientistas pediram que a sustentabilidade estivesse no centro das negociações. Em uma carta aberta, 300 organizações da sociedade civil instaram a UE a suspender as negociações. Foi em vão. Qual o motivo da preocupação deles? Desde janeiro de 2019, o país tem um presidente de extrema-direita: Jair Messias Bolsonaro. Às vezes ele é chamado de ‘O Trump dos trópicos’, mas ele se parece mais com o outro Messias, o Filipino Duterte. Bolsonaro foi levado ao poder pelos três “B’s” que controlam o parlamento: o “B” de Bala (a indústria de armamento), o “B” da Bíblia (as igrejas pentecostais conservadoras) e o “B” de Boi (como símbolo da poderosa agroindústria com seus latifundiários). Uma das primeiras decisões de Bolsonaro foi ‘estacionar’ a FUNAI, o órgão federal dos direitos dos povos indígenas, no Ministério da Agricultura. Um velho sonho se torna realidade: a agricultura de exportação em larga escala agora pode ocupar o Cerrado (uma savana rica) e a Amazônia ainda mais facilmente. Ao mesmo tempo, a resistência dos povos indígenas, dos sem-terra e dos pequenos agricultores familiares é criminalizada. O presidente da ‘Bala’ garantiu, de imediato, que latifundiários pudessem comprar mais armas. Desde que tomou posse, já foram liberados 262 novos agrotóxicos, muitos dos quais são extremamente tóxicos. A maior parte desses agrotóxicos são proibidos na Europa, mas acabam nos nossos pratos e nos nossos corpos através do comércio internacional. Sem falar dos corpos das crianças brasileiras em idade escolar, dos cidadãos das cidades, dos agricultores familiares (orgânicos) e dos indígenas no campo. Para que fique bem claro, estamos falando de fazendas entre 2.000 e 150.000 hectares de monocultura de soja, algodão ou cana de açúcar. O veneno é abundantemente pulverizado por aviões. Mesmo com ventos de baixa intensidade, o produto vai parar, por exemplo, em crianças nas escolas. Ou, tomemos a reserva indígena Xingu, uma imensa região de Cerrado e Amazônia, onde 17 povos estão tentando sobreviver. Eles são ameaçados não apenas por sojicultores que cobiçam suas terras. Não, a imensa área está completamente cercada de monoculturas de soja a serviço da agroindústria européia e chinesa. Todos os rios que desembocam no rio Xingu têm origem no meio de desertos de soja. A água é envenenada com agrotóxicos e metais pesados. Os índios nadam, bebem e fazem a sua comida com esta água extremamente poluída. E como é que ficam a UE e os direitos humanos no outro lado do oceano?
E…como é que fica o nosso modelo agrícola na União Europeia? Quais agricultores familiares conseguem competir com uma empresa agrícola brasileira de 80.000 hectares? O que acontece com nossos criadores de gado, que já comercializam seus produtos por preços subvalorizados, se forem importadas 99 000 toneladas adicionais de carne de bovino? E as exigências sanitárias que impomos aos nossos agricultores aqui, quando 180 mil toneladas de carne de frango brasileira inundarão nosso já saturado mercado? É sabido que o uso de antibióticos nas mega-granjas do Brasil é muitas vezes maior do que em nossas regiões. E o problema da salmonela que o agronegócio brasileiro não consegue controlar? Aparentemente, os nossos agricultores terão de pagar pelo setor de serviços da Europa e pela gula da indústria automobilística e química da Alemanha. Mercedes, Volkswagen, BMW, Bayer e, naturalmente, outras empresas europeias que têm os seus escritórios de lobby em Bruxelas. A Bayer incorporou o Roundup da Monsanto. O Round-up que é abundantemente pulverizado de aviões. Há dez anos, o Brasil é campeão mundial no uso de agrotóxicos por habitante. Ao mesmo tempo, a Bayer tem inúmeros medicamentos. Se os brasileiros ficarem doentes por causa do veneno, eles podem ir às farmácias que se encontram em cada esquina da rua. A Monsanto era o verdadeiro diabo dos movimentos sociais brasileiros. Isso agora é neutralizado pelo chavão brasileiro: “O que é Bayer, é bom”. Estão todos felizes agora?
O acordo ainda não foi ratificado pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais. Podemos esperar que ele ainda encontre a resistência necessária?
Luc Vankrunkelsven
Ecofilósofo, ativista e fundador da Wervel (Bélgica), mediador de diálogo internacional Brasil/Europa com a Fetraf Sul e Fetraf Santa Catarina desde 2006. É Autor de vários livros sobre temáticas da Agricultura, Sustentabilidade e Clima. Suas ultimas publicações Traduzidas ao Português são: ‘UM MUNDO DE ESCRAVIDÃO OCULTA. Impressões ao Longo do Caminho (2020) e ”PÉS NA TERRA BRASILEIRA. Em Busca dos Povos Tradicionais (2020)” – Assista aqui Lançamento dos dois livros no Brasil https://www.youtube.com/watch?v=15L29aDPgiM