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Sublime nas propriedades da Agricultura Familiar

professor Neuri em seu escritório

Por prof. Neuri A. Alves*  

Há muito quero escrever sobre percepções, que pouco (ou nunca) aparecem nas descrições sobre as propriedades da agricultura familiar – o viver no campo, para além da produção. Pois embora o esvaziamento decorrente do êxodo, o desmatamento e impactos ambientais que impuseram silêncio ao cantar dos pássaros, comunicação das abelhas. A cooptação do tempo e espaço na propriedade, alienados e condicionados a produção de escala nem tudo é ausência, silêncios, insensibilidades e vazios. Em grande parte das propriedades, a orquestra natural do campo ainda toca através das abelhas, pássaros, cigarras na grande sinfonia do espaço natural.

Para muito além das paisagens marcadas muitas vezes pela monocultura que inicia na porta da casa, também existem exceções que mudam a nossa vida no primeiro olhar. Em muitas propriedades, os espaços em torno das moradas, revelam que nem todo tempo foi condicionado a engrenagem do produtivismo. A vida nas propriedades também é ornamentação, cultivo de belos jardim em perfeita simbiose com o verde dos gramados. Experiências sublimes de jardins replantados de dentro para fora. Partilhados como complemento do que há de mais belo no humano que habita aquele lugar.

Em Santa Catarina são mais de 160 mil propriedades de agricultura familiar. Um universo que em meio século da revolução verde, o capitalismo agrário reduziu a mera unidade produtiva para balança comercial. Uma coisificação total do sujeito que ali sobrevive. O agricultor teve sua identidade desfigurada, arrancada de si mesmo. Perdeu o nome, costumes, origens, relação comunitária, celebração da vida, sendo transformado em código de estimativa e produção. Seu lugar, assistido ou tomado tecnicamente para produzir escala e não como modo de vida. Uma lógica perversa de desconstrução em detrimento da capilaridade do lucro.

Nesta, não há espaço para descrição de sentimentos, socialização das belezas de jardins e bosques, que ali permanecem ou emergem como uma subversão a lógica de servidão. Pois plantar jardim é diferente de planejar, este último obra do jardineiro, do paisagista que ornamenta espaços, muitas vezes para acrescentar valor imobiliário a moradia no mundo urbano. Ou então ostentar posição de poder, como no mundo antigo nos grandes jardins dos palácios egípcios, oásis na mesopotâmia. E porque não, na própria tradição hebraica como lugar de descanso, proteção, deleite, encantamento e satisfação, como é possível ler nos textos e narrativas bíblicas – o livro do gênesis fala que Deus plantou seu próprio jardim.

Mas os jardins do qual quero descrever são aqueles que meus pés pisaram, meus olhos viram e minha alma não esquece. Quero escrever sobre jardins nas propriedades da agricultura familiar, aqueles do qual a experiência de beleza se revela no que dizia o grande mestre Rubem Alves: ‘jardins primeiro existem dentro de nós e só depois são replantados por fora’. Este jardim, não é mera ornamentação de espaço, é transposição do mais belo que temos por dentro. Experiências que não se explicam, se experimentam presencialmente. Algo pouco falado quando se trata da vida no campo. Nas propriedades da agricultura familiar há belezas que precisam ser partilhadas, jardins que contam muito daquele lugar e de quem nele habita.

O rural é um universo que não cabe no microcosmo das definições reducionistas, fugazes, por vezes descritas a distância em uma mesa acadêmica. Outras, por percepções apressadas, com a frieza mesquinhas do financeirismo. Adentrar as propriedades da agricultura familiar requer entrega de tempo, aquilo que na ‘sociedade do cansaço e escravidão’ se entende como precioso, caro demais para desperdiçar. E tempo é tudo, para quem quer ver além do que os olhos apressados podem ver. Ou seja, quase sempre somente os desafios ou teimosia de permanecer nas propriedades. Embora, entre esses grandes desafios, estejam a do agricultor reconquistar o direito de decidir sobre seu tempo, sobre o que fazer livremente em sua própria propriedade, rompendo condicionamentos exclusivistas. Os agricultores tem muito a nos mostrar e ensinar. Plantar jardins, reservar ou plantar bosques se tornam um exemplo de subversão a lógica perversa de só produzir.  Uma agricultora me disse que plantou o jardim quando perdeu o filho, foi uma forma de materializar a presença e preencher o vazio deixado – olhar para os detalhes daquele jardim é olhar imensidão do seu amor. – Ali entendi e percebi que jardins e bosques contam histórias, batem corações!

Em minhas andanças e contatos com famílias de agricultores por Santa Catarina conheci experiências de tirar o folego. Como se as narrativas, epopéias (sagradas ou profanas) de outrora fossem agora percorridas, não nas páginas de livros, mas nos terreiros das propriedades. Há uns três anos visitei a família Favarin no alto vale do Itajaí. Era noite quando cheguei, a escuridão agasalhava a vida na propriedade preparando o outro dia por vir. Confesso! Foi encantador, logo cedo deparar-me com o jardim que cercava a casa, algo de muito belo vivia ali. Pois, uma agricultora que reserva seu precioso tempo para plantar jardim, não está plantando algo qualquer ou ornamentando para especulação imobiliária. E sim, transportando para terra, ao alcance de seus olhos, o que de mais valioso tem dentro de si – o jardim sonhado, plantado primeiro na alma. Menciono essa experiência para representar as dezenas de outras que tive o prazer de conhecer, oportunidades terapêuticas do existir.

O escritor Franz Kafka disse que quem possui a faculdade de ver a beleza, não envelhece. Se estiver certo, existem indivíduos que o poder do que é belo os levará a jovialidade terna e eterna. A vida experimentada como práxis etérea, terna de amor com o que sonha, vive e faz. Se todo jardim começa com um sonho de amor, antes de serem plantados em volta da casa nas propriedades, eles nasceram dentro da alma. Por isso, quem não tem jardins por dentro, não passeará neles por fora. Ainda segundo Rubem Alves, no paraíso Deus não construiu altares e catedrais. Plantou um jardim, pois plantar jardim é a mais alta forma de espiritualidade. É a natureza humanizada, que se faz lugar especial para se morar, oportunizar também que outros olhos, corações, espíritos e mentes possam nele passear e contemplar. Produzir flores nem sempre é uma alternativa para sobreviver, muitas vezes apenas para viver!

Porque abordar essa questão aqui? – Para dizer que é preciso devolver a agricultura familiar e camponesa o reconhecimento do tesouro de sua pluriatividade. Dizer também que não temos saída fora da sensibilidade. O racionalismo do século XX e XXI produziu uma geração vazia, infeliz e narcísica de sua pequenez. Milhões de sujeitos no planeta mergulhados no sofrimento existencial. Assumidos ou não, doentes – não é só sociedade do cansaço, mas do desespero e vazio. O inferno do mundo urbano é o sanatório das loucuras antes tratadas em espaços terapêuticos adequados. Hoje naturalizados na automedicação com ansiolíticos comprados no varejo comercial. Há uma miséria existencial ocultada nos dados. Cidades como Chapecó já possui uma farmácia para cada 700 habitantes. São números que revelam uma sociedade doente, famélica de espaços saudáveis para passar momentos, finais de semana com a família ou imersão individual. E as propriedades rurais bem estruturadas, preparadas para preencher esses vazios, podem ser a saídas desta tempestade perfeita de males existenciais.

Isso explica porque mirantes, sítios de contação de história, circos, bosques, acolhidas na roça, auto colheitas de frutas e alimentos, hospedagem em sítios de flores, passeios a cavalos, trilhas, visitas a agroflorestas, ritos ancestrais, noites de lua ao redor de fogueiras, entre outras opções tem ganhado tanto espaço. A vida urbana produz sofrimentos existenciais que não se curam a base da química laboratorial. É preciso reconexão com as originalidades, reencontro com o sujeito espiritual, ou seja, com aquilo que nos preenche, que foge ao padrão e condicionamentos a que todos foram colocados na grande esteira material do mundo pós moderno.

É preciso devolver a vida sua condição de centralidade, e a sensibilidade dos olhos o direito de nos reconectar com aquilo que recebe sentido mais profundo quando visto com a alma. O sublime não se compra no supermercado e não se substitui com a farmacopeia. A vida é soma do diverso, de pluralidades, pluriatividades, e que se faz triste, empobrecida e esvazia quando presa na singularidade. Viver é espantar-se, é catarse, subversão as imposições e condicionamentos, é reabastecimento com as totalidades belas que o mundo pode me oferecer – turismo rural e propriedades acolhedoras estão entre essas opções.

 

*Neuri A. Alves é professor, filósofo, pesquisador e assessor de formação e elaboração

 

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