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Semana Verde de Berlim: quanto a Europa contribui para a alimentação mundial?

Antonio Andrioli em entrevista em Berlin

Desde a guerra de agressão russa na Ucrânia, surgiu na UE uma nova discussão sobre a contribuição da Europa para a segurança alimentar global. Uma enorme pressão está sendo construída para colocar a proteção ambiental e climática em espera, a fim de expandir a produção intensiva. O fato é que a Ucrânia se tornou um importante fornecedor de certas commodities agrícolas nos últimos 30 anos e, portanto, é de grande importância para o abastecimento global.

Gargalos de oferta e aumentos maciços de preços de produtos agrícolas não são apenas resultado da guerra na Ucrânia. Porque a situação do abastecimento estava tensa mesmo. Atualmente 828 milhões de pessoas no mundo passam fome. Por um lado, a especulação, o consumo de bioenergia e a produção de ração desempenham um papel importante, por outro, a crise climática. Então é claro que algo tem que mudar. Mas será que a Europa assumirá a responsabilidade global de alimentar o mundo se a produção agrícola local for intensificada em detrimento da proteção do clima e do meio ambiente?

Ou a Europa está pensando principalmente em si mesma e em seus mercados de vendas quando os países membros insistem em virar as costas ao Green Deal na medida do possível? Na discussão sobre a segurança alimentar global e a contribuição da Europa, além da produção sustentável, também deve ser dada atenção para onde muitos produtos agrícolas ainda vão parar: no cocho, no tanque ou na lixeira. Quais são as soluções reais para a segurança alimentar global em tempos de múltiplas crises e que contribuição a Europa pode dar? painel de discussão

 

Participação do Prof, dr. Antonio Andrioli, em Painel de debates na Semana Verde de Berlin Alemanha sobre produção de alimentos no Planeta.

 

Christiane Grefe: Eu gostaria de dar as boas-vindas ao Dr. Antônio Inácio Andrioli. Ele vem do Brasil, um país que está fortemente interligado com o nosso sistema agrário, porque muita ração para a produção animal é importada de lá. Andrioli foi Vice-Reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul no Brasil, é especialista em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável e também pesquisou, discutiu e lecionou aqui na Alemanha, na Universidade de Hamburgo. Estamos interessados em saber a sua perspectiva em relação à Europa. Como é o seu ponto de vista da América Latina para cá?

 

Antônio Andrioli: Bom dia! Muito obrigado pela oportunidade de poder falar aqui! A primeira coisa que eu sempre questiono nessa ideia de “quem alimenta o mundo” é essa arrogância em afirmar que uma parte do mundo deveria alimentar o restante. Muitos acreditam que isso não teria nada a ver com ideologia. Isso, na verdade, é uma enorme ideologia. Se acredita que uma parte do planeta poderia produzir tanto, que ela seria capaz de tornar supérfluas as outras estruturas que também produzem, de modo que estas se tornem dependentes daquelas. Esta, portanto,  é uma grande ideologia. Um senhor que costumava afirmar isto e foi reconhecido como cientista é David Ricardo. Ele desenvolveu essa ideia das vantagens comparativas, que é, na realidade, a base ideológica da globalização agrícola. A ideia de que cada parte do mundo deva se limitar àquilo que consegue produzir de forma mais barata. E quando se falava em barato, a natureza seria gratuita. Os custos dos navios também não estavam incluídos na conta para transportar todas essas mercadorias. Me refiro, por exemplo, ao custo para transportar o vinho de Portugal para a Inglaterra e depois retornar com carregamentos de tecidos naquela época. Não havia uma discussão sobre o problema energético! Imaginem se o Brasil “alimentasse o mundo”. Essa, infelizmente ainda é uma questão presente no agronegócio brasileiro. Se costuma dizer “só nos digam quanto irão pagar que nós podemos alimentar o mundo”! Mas, o problema é que já produzimos demais e ainda temos 33 milhões de pessoas passando fome! Essa conta não fecha. Quem alimenta mesmo o mundo? Os agricultores! Estes, que, de acordo com David Ricardo, com o avanço da economia de mercado capitalista, deixariam de existir, certo? Mais tarde, muitos outros economistas também previram o fim da agricultura camponesa. Entretanto, metade das pessoas no mundo continuam sendo agricultores, não é verdade? Mas a maioria dos economistas agrícolas ainda não conseguiu refutar as suas antigas ideias! 3,37 bilhões de pessoas no mundo são agricultores! E eles alimentam o mundo! Eles alimentam primeiro a si mesmos, não é mesmo? E, se eles não conseguem mais se alimentar, então a fome no mundo aumenta. E essa é a grande questão. As estruturas de dependência criadas pela globalização agrícola, baseada na teoria das vantagens comparativas, segunda a qual se deveria produzir cada vez mais barato, levaram à especulação com alimentos. Isso tem levado ao desperdício. Isso tem levado a uma situação em que a maior parte alimentos é destinada à ração animal e à produção de combustíveis! Estas são as causas da fome! E, para mudar isso, precisamos fortalecer a agricultura familiar e camponesa. Ela constitui metade da população na África. E, eu diria que ela é responsável por 70% da produção de alimentos em toda a América Latina. E ela, infelizmente, não têm recebido apoio suficiente por parte dos governos. Talvez porque ela não seja responsável pela maior parte das exportações agrícolas, através das quais se pode financiar alguns programas sociais, incluindo pacotes de alimentos para agricultores mais pobres, que já não são mais capazes de se alimentarem. Isso não é um paradoxo? Mas as soluções existem: é preciso fortalecer a agricultura em pequena escala! E a Europa pode desempenhar uma função de exemplo a ser seguido nessa área. Nós, cientistas, também temos sido muito influenciados pela Europa. Afinal, David Ricardo também era um europeu, certo? E os europeus também já fizeram muita coisa nesses países que agora passam fome, não é mesmo? Estas estruturas de dependência podem ser abolidas, se também acabarmos com essa nossa arrogância de que uns devem alimentar os outros. E precisamos criar sistemas alimentares resilientes. Sim! E quais são os aspectos mais importantes para desenvolver sistemas alimentares resilientes? Que as sementes, o acesso à terra, que a biodiversidade, a água e, especialmente os saberes destas pessoas que ainda sabem lidar com esta água, com estas sementes, com esta biodiversidade e com esta terra sejam preservados. E isso é o mais importante quando se fala em soberania alimentar. Para mim, isto é o oposto da globalização agrícola. A soberania alimentar não significa que um alimenta o outro, mas que sejamos capazes de produzir regionalmente sem depender de regiões que são destruídas pela guerra ou pelas catástrofes climáticas que nós mesmos produzimos através desta agricultura dependente. Não é possível que  aqueles que causam os problemas agora nos tragam as soluções. Que solução seria esssa? Que uma suposta cura viria de quem causou a doença? É isso? Deveríamos talvez esperar que estas mesmas estruturas realmente possam alimentar o mundo? Para elas, não se trata de alimentar o mundo. Quando quem produz soja afirma que alimenta o mundo, eu preciso calcular a quantidade de soja que se come. Quanto as pessoas comem mesmo dessa soja que produzem? Quanto se comeu destas 390 milhões de toneladas que foram produzidas em todo o mundo no ano passado? O Brasil produz soja em uma área do tamanho da Suécia. Quanto comemos de tudo isso? Isso não parece alimentar o mundo, certo? Mas nós produzimos carne a partir dessa soja e isso também é comida. Sim, mas produzimos demais. E depois temos novamente o problema do desperdício. Só falta agora que os restos da carne daqui voltem para nós. Isto já acontece na África e em outras partes do mundo. E é esta estrutura de dependência que a Europa realmente precisa mudar. Essa é a minha expectativa. Eu espero por essa mudança e tenho dito muitas vezes que também na Europa é necessária uma reforma agrária em favor da agricultura de pequena escala. Isso seria uma referência para nós, isso fortaleceria a luta contra a fome no mundo todo. É isso que eu espero da Europa.

Christiane Grefe: Muito obrigado. Foi uma resposta muito clara.

Christiane Grefe: Apenas uma pergunta muito breve. Houve uma mudança de governo no Brasil. O governo anterior foi bastante ativo na promoção da exportação de soja. Será que isso vai mudar com Lula? Resposta curta, por favor!

Antônio Andrioli: Serei breve. Me perguntaram o que eu diria se fosse chamado por Lula para dizer o que ele deveria fazer? Então eu disse: PAA, PNAE e Planapo. O que isso significa? PAA é a compra de alimentos diretamente aos agricultores locais. Isto já foi feito em dois governos anteriores de Lula. O segundo é o programa da merenda escolar, para que os alunos tenham alimentos saudáveis nas escolas, criando a possibilidade de retirar os agricultores do assim chamado mercado tradicional para obterem melhores preços. E o terceiro é o plano nacional de promoção da agroecologia e produção orgânica. São 3 políticas públicas que eu espero desse governo. Será que estou exagerando? Mas eu estou apenas querendo o que já existiu antes e tirou o país do mapa da fome da ONU… E essa é talvez a preocupação mais importante deste governo, que começou com essa esperança. Eu estou otimista.

Christiane Greffe: Mas eu acho que ele não lhe telefonou, ou?…

Antônio Andrioli: Mas se ele me ligasse, eu diria imediatamente: Planapo, PNAE, PAA. Ele compreende isso.

Christiane Grefe: Muito obrigada pelo seu apelo à Europa para promover uma mudança na agricultura!

Antônio Andrioli: Ontem, na abertura da Semana Verde, eu tive também uma outra impressão. Há sim pessoas vendo onde as coisas estão pegando fogo, mas há outras que também ainda estariam dispostas a acender fogo em novos lugares. E essa é exatamente a urgência que tenho para falar. No final do mês, provavelmente o chanceler alemão irá ao Brasil e pode ser que tenhamos um novo incêndio: a volta do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul. O argumento é a necessidade de parceiros comerciais confiáveis. Mas estes parceiros comerciais confiáveis não serão o governo Lula, e sim aqueles que querem derrubar o governo e financiaram a tentativa de golpe no dia 8 de janeiro. Ou seja, os grandes proprietários de terras do Brasil. Mas preciso dizer aqui, porque devemos ser contra este acordo ou impedir novos passos rumo a uma maior globalização comercial entre a União Europeia e o Mercosul. Antes de mais nada, esse acordo comercial não é politicamente desejado. Os agricultores também não o querem. No Brasil, os pequenos agricultores não o querem e eu suponho que os agricultores europeus também não o queiram. Em segundo lugar, ele aumenta ainda mais a desigualdade social. É mais um incêndio. Em terceiro lugar, ele promove longas rotas de transporte e mais desmatamento. A desigualdade irá aumentar ainda mais entre os dois continentes. Está previsto que o Mercosul produz e exporta principalmente produtos primários e agrocombustíveis. Isto reduz a produção de alimentos nos seus próprios países. Há consequências negativas para o ambiente e para a saúde, porque haverá mais monoculturas que utilizam agrotóxicos importados da União Europeia e podem voltar à Europa, mesmo que já tenham sido proibidos aqui. Por isso, talvez voltem. Resumindo, eu diria que, através deste acordo, a União Europeia importa mais destruição ambiental e exporta violações de direitos humanos. Portanto, não devemos acender outro fogo quando já há incêndio o suficiente. Isto pode acontecer no final deste mês e eu espero que ao menos os parlamentares que já eram contra não venham argumentar que, por causa do contexto de guerra, seria necessário aprovar o acordo e porque agora o presidente é o Lula. Já está sendo difícil garantir que o Brasil cumpra  a sua constituição federal. Não consigo imaginar que agora o país cumpra tudo o que assina em acordos, mesmo quando eles estejam bem escritos. Muito obrigado, eu precisava dizer isto!

*Conferência realizada no dia 20 de Janeiro de 2023 na Heinrich Böll Foundation, (Schumannstraße 8, 10117 em Berlim) e via Livestream.

Evento no âmbito da Semana Verde Alternativa da Fundação Heinrich Böll.

 

Moderação: Christiane Grefe, jornalista do jornal Die Zeit e autora de livros

Foto da capa: Thomas Hager

Legendas em português: Robison José Santos da Silva

 

Assista os Vídeos da Palestra aqui:

Versão original em alemão:

https://www.youtube.com/live/tAEyUswOPdA?feature=share

 

Mais informações:

https://martin-haeusling.eu/…/2928-tagung-wieviel…

 

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