*Esta é a introdução do livro “Destruição e recuperação. O que o Brasil tem a ver com a Europa?”, de Luc Vankrunkelsven.
Não é apenas no Brasil que está ocorrendo muita destruição. Trata-se de um fenômeno global. No entanto, o alarme disparou internacionalmente porque, desde 2019, a destruição tem sido muito rápida neste imenso país. O presidente Jair Messias Bolsonaro, apoiado pelo exército, pela maioria das igrejas pentecostais e pelo agronegócio, teve muito a ver com isto. Foi ele que acelerou o motor. Por exemplo, em agosto-setembro de 2022, o desmatamento do Cerrado aumentou em 135% em comparação com o mesmo período do ano anterior. Restaurar o Cerrado não é simples, porque as raízes grossas e centenárias das árvores não podem ser simplesmente substituídas. A ‘substituição’ geralmente é com soja, com raízes muito curtas. Colonialismo, a serviço da Europa, dos Estados Unidos e da China, se mostra com novos disfarces. É disso que trata uma parte deste livro.
Bélgica-Brasil
A Bélgica participa disso intensamente. Enquanto a pegada de carbono do Paquistão (que, em 2022, foi muito afetado por inundações decorrentes da mudança climática) é de apenas 0,79 hectares/pessoa, para os belgas ela é de 7,44 hectares/pessoa. O Paquistão ocupa a 184ª posição; a Bélgica ocupa a 14ª, e isso não inclui nosso histórico de emissões. É que, no século XIX, a Bélgica foi o primeiro país industrializado da Europa continental. O dia do excesso global (o dia em que nós, enquanto humanidade, esgotamos os recursos da Terra) foi consideravelmente antecipado; em 2022, ocorreu no dia 28 de julho. Para a Bélgica, é ainda mais extremo: 26 de março. Se todos vivessem como na sociedade belga, precisaríamos de 4,1 planetas. Uma parte importante nisso é a forma como nos alimentamos. O belga médio obtém 2/3 da ingestão de proteínas de origem animais (carne, queijo, ovos, peixe da aquicultura), 1/3 consiste no consumo direto de proteínas vegetais. Isto não é saudável, nem para nós, nem para o planeta. Com isso, para obter a ração para os animais, nós estamos com os dois pés no Cerrado brasileiro. Na jurisprudência, existe uma coisa chamada ‘omissão culposa’. Este estilo de vida do belga médio não é constitui omissão culposa? Para nós mesmos e para o planeta, a proporção mais saudável é: 1/3 de proteína animal; 2/3 diretamente de fontes vegetais.
Restaurar a vida do solo
Ao mesmo tempo, há pessoas, grupos e povos atuando permanentemente na restauração. Eles recebem muito pouca atenção. É por isso que nós damos destaque a eles neste livro, juntamente com as acusações legítimas.
A terra que nos suporta está em constante restauração, mas está sendo desequilibrada pelo homem. É que estamos vivendo plenamente no Antropoceno. Há ‘antropo’, pessoas, que estão do lado certo, do lado da restauração. A restauração da vida do solo é crucial para isso. É por isso que este livro também termina com um diálogo sobre a importância de uma vida saudável no solo. A Fetraf – Santa Catarina, um sindicato de agricultores familiares com quem tenho contato, com um projeto de 500 agricultores, também está comprometida com a restauração da vida no solo. Na década de 40 do século XX, Sir Albert Howard, o pai de fato da agricultura orgânica moderna, chamou a natureza de ‘agricultor supremo’, porque ao longo de milhares de anos ela produziu o máximo de abundância com o mínimo de desperdício, e isso em todos os ambientes imagináveis. Para ele, a chave para uma agricultura bem sucedida reside, portanto, em imitar a natureza o mais fielmente possível.
A FAO também participa
A FAO (Organização para Alimentação e Agricultura, em Roma) também está começando a enxergar isto. Esta organização das Nações Unidas está até mesmo incorporando os termos ‘agroecologia’ e ‘soberania alimentar’ dos movimentos sociais. Em 2017, a FAO publicou um relatório intitulado ‘O Futuro da Alimentação e da Agricultura’, no qual se previa que a produção de alimentos, ração anima e combustíveis deveria aumentar em 50% até 2050. Referindo-se à mudança climática, urbanização, escassez de terras, danos ecológicos, conflitos, desperdício, pragas e doenças – para citar apenas alguns desafios que enfrentamos – os autores do relatório observaram que ‘sistemas agrícolas baseados em consumo intensivo de insumos e de recursos causam desmatamento maciço, escassez de água, esgotamento do solo e emissão de elevados níveis de gases de efeito estufa não são capazes de contribuir para a produção de alimentos e agricultura sustentável.
O relatório concluiu que ‘praticar negócios como de costume não são mais uma opção’. Em vez disso, o que é necessário é ‘um processo transformador focado em abordagens holísticas, como a agroecologia, a agrosilvicultura, a agricultura sustentável com adaptação inteligente ao clima, que também se desenvolve a partir de conhecimentos indígenas e tradicionais’. Para ilustrar isso com a as palavras do monge Thomas Merton: “A cultura mais rica e mais científica do mundo, organizada de modo a permitir uma produção ilimitada, gasta seu enorme poder e riqueza não em fertilidade, mas em ferramentas de destruição.”
Durante minhas viagens pelo Brasil, sinto constantemente a dor dos ecossistemas destruídos e dos povos que estão sendo expulsos. Não, não apenas a Floresta Amazônica! Também o Pantanal, o Cerrado, os campos no sul do Brasil e a Mata Atlântica junto ao Oceano Atlântico. Mas eu viajo de ônibus principalmente para visitar os grupos que atuam na conversão: movimentos sociais, universidades, faculdades que defendem a agroecologia. Sim, a Embaixada da Bélgica também está aberta ao caminho da restauração.
É por isso que este livro termina com duas iniciativas que trabalham na restauração e no diálogo: CIMIC Vzw e Picaflores.org. Esperamos que o novo presidente Lula tenha a oportunidade de transformar a destruição em restauração.
Luc Vankrunkelsven, 30 de outubro de 2022.