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Não sobrevivemos para contar as lágrimas

professor Neuri em seu escritório

Por Neuri Alves*

Após a longa jornada de batalhas, aprendizados, partidas dolorosas e chegadas milagrosas, respiramos fundo para dizer a nós mesmos: sobrevivemos. Da tempestade quase perfeita, ao baixar das águas, acalentar dos ventos e a esperada calmaria. O que não exclui os destroços ainda cravados na alma de muita gente. Há dores que não passam, feridas que não fecham, dias nebulosos que o sol não dá conta. E na mesa do cotidiano ainda viramos às páginas do menu da esperança, pedimos porções de recomeços possíveis, necessários – e para bebida, uma taça de novos ares com oxigênio limpo.

O planeta enterrou seus mortos, mas também descobriu nos vivos, o que talvez não pudesse esperar. Não foram poucas experiências onde a estupidez matou mais do que o vírus, que a ganância disputou as fragilidades da vida com a fria crueldade de elevar fortunas, sob escombros das dores do mundo. Não foram poucos os gestores que se mostraram piores do que já se sabia. O Brasil foi laboratório aberto. Milhões de contaminados, mais de meio milhão de mortos, em parte, produtos da estupidez, da maldade bem gerida por aqueles que tinham o dever de cuidar da vida. E a isso, não há palavras que acalente dores, ou seja capaz de remontar projetos existenciais despedaçados.

O vienense Sigmund Freud (1856/1939) disse: ‘’Não há e certamente jamais se encontrará remédio capaz de acalentar a dor da perda, a experiência de morte’’. – Será? – A interrogação é fruto deste tempo – que o assombro revela, denuncia: perdemos parte (ou a total) sensibilidade. Cristalizou-se uma naturalização da vida findada e justificada como consequência de comorbidades, uma naturalização da morte como violência gratuita, infortúnios do destino. E claro, como ordem natural das coisas, do inevitável ciclo biológico ou programado por um ente superior. A típica palavra final dos que não encontram, não tem ou não procuram explicações, mas comercializam receitas para um mundo em que os ingredientes não combinam com o prato existencial dos dias. Ou então, dos que justificam suas incompetências a frente das decisões políticas para seu povo.

O que se revelou na explicita desatenção aos sofrimentos, transformados em gélidas estatísticas nos últimos três anos do pior governo de nosso país. Como se contar lágrimas fosse possível e bastasse uma quantidade, volume destas, para que tudo retorne ao normal. – A dor como um rio condenado ao esgotar-se pelos dias, ou anestesiados para instantes intermináveis.  Nos congelamos em alguma esquina do tempo que não parecia passar, desnudados publicamente, mostramos sem pudor o que há de pior na espécie em individualidades, perversidades e irresponsabilidades. E como em um grande pântano da ortodoxias negacionistas, enterramos a vida, o tempo, o mundo, no panteão ideológico dos deuses do mercado, do ultraconservadorismo, negacionismo, exclusão e morte.

Estávamos só! Nós, em nossa imensa solidão, no inferno do mundo conectado. Confinados como grande aldeia, como espécie ameaçada na arena global, brasileiros em abandono total. Reféns do tempo, no jogo desigual do esconde e esconde com a pandemia e um vírus letal, alvos frágeis na roleta russa de um presidente irresponsável e a negação das vacinas.  Mas sobrevivemos para contar nossos mortos, solidarizar nossas dores e construirmos novos horizontes. Vencemos etapas, não totalidades. Reocupamos a trincheira da coragem, remendamos fissuras no tecido da democracia, e nos auditáveis descontentamentos de uma lúcida maioria do país, apostamos o futuro vitorioso nas urnas, mesmo sob a tempestade de maldades. Vencemos como povo, como nação, como a vida.

É tempo de reconstrução, novo esperançar, tecer a colcha de horizontes com Lula. De enfrentar nacionalismos do cagaço, fanatismos torpes, fascismos requentados, vandalismos e apologia à barbáries. É tempo de baixar as cruzes empunhadas como espada, baixar o dedo em riste como rifle, recolher a língua afiada como faca, e conter a estupidez como religião cultuada. Tudo isso, mediado com palavras de paz, instrumentos de diálogo capaz, e claro, os instrumentos jurídicos do contrato de civilidade aplicado aos que na dialogia social não respeitam os limites, e acham que a tudo e a todos fazem o que bem entendem como direito à liberdade.

O novo Brasil que precisamos emerge para superar o preceito humano e social de Pascal, que nos define e reduz a ”quimeras, confusas, modelado em caos. Juízes de todas as coisas, vermes, imbecis, depositários de verdades e incertezas, glória e nojo do universo”. – O ser humano é ‘animal político’ disse Aristóteles, um construtor da justa medida em um mundo dialético, diferente de polarizado. Não sobrevivemos a grande pandemia e a pior gestão de um presidente em século de república para contar nossas lágrimas. Mas para além de não esquecer irresponsabilidades, sofrimentos, negligências, dos milhões de desempregados, famintos, descapitalizados, e porque não, dos fanáticos orientados também. Sobrevivemos para afiar a esperança, calçar a jornada da práxis e governar para vida – como país, nação, e povo, – amplitudes que não cabem nos cercadinhos da insensatez!

 

*Neuri A. Alves é professor, filósofo pesquisador e assessor de formação e elaboração

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