Por prof. Neuri A. Alves *
Quase sempre não escrevemos ou dizemos algo sobre nós mesmos, precisamos de histórias, personagens, ambientes. Viajantes de longas jornadas, embarcados em deslocamentos intransferíveis no mundo e longas epopéias percorridas dentro de nós mesmos. Ao longo de trajetos e percursos encontramos memórias: físicas, geográficas, ilustrativas, lúdicas, e porque não, também metafisicas. Tem pessoas, personagens, narrativas sobre fato presente e também inventadas no fluxo incessante, da transitoriedade que nos empurra ao inevitável. Não viajamos sozinhos, independe do caminho ou lugar, ninguém vive em plena solidão. O tempo é cupido presente, companhia maior. Ninguém produz segredos inabaláveis com essa indissociável presença, e que sem descanso, nos conduz o ponto final no roteiro da vida. O tempo, que a tudo e a todos devora.
Talvez por isso, escrever sobre alguém, saber e compreender o grande percurso de sua viagem será sempre um misto de ousadia e temeridade. Ousadia, por descrevemos quase sempre apenas o visível, ou aquilo que nos contam sobre a jornada. Temeridade, porque o caminho guarda segredos reservados somente aos viajantes. E um ser humano não se deixa tomar como coisa manejável, ao ponto de ser dissecado, conhecido, e isso acaba nos limitando conhecer apenas o permitido, para além, tudo imobiliza-se diante do enigmático da alma humana. E então, uma grande parte do que achamos compreender como leituras profundas, quase sempre, revela superficialidades.
E por que digo isso? – Porque arrisco escrever sobre percepções, embora profundas, mas carentes de vivencialidades cotidianas. A dicotomia provocada pelas distâncias continentais, as vivencias no social, a introspectividade tão humana e pessoal de quem arriscamos descrever. Imagina então, escrever sem os elementos que nos aproximariam de uma realidade mais concreta sobre um ser humano qualquer. Mas, inevitavelmente é com esse sentimento que me desafio descrever um amigo que conheci em minhas jornadas assessorando a Fetraf-SC. Companheiro de interlocuções, jornadas, angustias, percepções, elaborações e publicações sobre os grandes desafios do mundo atual nos dois lados do atlântico.
Claro! Falarei de Luc Vankrunkelsven, um dos singulares andarilhos planetário, embaixador do esperançar, voz intercontinental na defesa da mais antiga savana do planeta, o bioma Cerrado. Escritor, ativista e militante das causas da agricultura sustentável nos dois lados do oceano. O menino, filho de um veterinário que sonhou na infância conhecer o Brasil e os povos originários. Cresceu, mergulhou nas meditações do mundo como monge premonstratense em uma abadia de sete séculos na Bélgica, mas diferente de seus confrades, se fez missionário das causas ambientais e sociais. Pôs o pé na estrada com sensibilidade, e durante as duas décadas deste século construiu um legado de relação com o Brasil. Ser um dos grandes parceiros e interlocutor da Agricultura Familiar entre Brasil e Europa. Porque não, um membro honorário da Fetraf Sul e Fetraf Santa Catarina na região sul do Brasil.
E será sobre esse, por seu longo trabalho e parceria, que a partir de agora o Site da Fetraf Santa Catarina irá publicar durante os próximos meses. Será uma série de produções textuais deste Belga generoso, sensitivo, comprometido com as causas da Agricultura Familiar e Camponesa no Brasil. Publicaremos textos, fragmentos, percepções de sua última viagem ao Brasil no ano de 2022. São fragmentos textuais, que estão em seu novo livro lançado recentemente na Europa, em processo de tradução também para o português neste momento. E assim que impresso, fará chegar até as organizações da Agricultura Familiar, a exemplo dos mais de 14 livros já traduzidos. Então, aproveitem para viajar com ele em cada narrativa, história em forma de crônica, simbiose de gênero literário que publicaremos aqui.
São descrições de suas vivências, convivências e sensações, naquilo que ele mesmo chegou cogitar como sua última grande jornada. – Talvez! – Digo última, pelo peso da idade sobre o corpo, as energias já consumidas pelo passar dos anos. Mas também, porque esse franzino ser humano, que sobreviveu a batalha pela vida em um leito de hospital na Bélgica acometido gravemente pela Covid19, sobrevivente, desafiou-se para mais uma visita ao Brasil. Um brindar a vida com sua presença física, humana, e a materializou como passagem sua por aqui escrevendo, para nos oferecer mais um livro publicado, agora talvez sim, o último. E por que? – Porque talvez seja de fato sua última grande viagem, o encerrar de seu ciclo literário. Pois, há poucas semanas, tristemente Luc descobriu e socializou ser portador de Esclerose Lateral Amiotrófica (ALS), uma doença neurológica grave, de rápida progressão, como se enfim a vida recebesse um prazo de validade, triste, inevitável, e assim como o tempo, inegociável.
Portanto, chegou o momento de viajarmos com ele nessa próxima jornada. De o ouvirmos, sentir as pedras no terreno de sua travessia, absorver um pouco do que é capaz de transmitir sobre si mesmo. Pois o esboço de um ser humano, nunca o seu conhecimento faz-se através dele mesmo, pelo que nos conta de sua pessoa, suas atitudes, ações ou viagem, do estudo sobre sua obra. E Luc Vankrunkelsven não fez uma viagem qualquer, tem muito de sua profundidade humana, tem muito de nós. Suas histórias, suas crônicas são reais, vividas por ele mesmo sobre o que aprendeu no mundo. Luc é um Belga, cidadão intercontinental, sujeito social feito de esperançar, que até aqui soube amargar a miséria secular deste tempo, e a eleva-la a grandeza da vida. Não há o que escrever sobre ele, capaz de descreve-lo em totalidade. Senão, aproveitar para ler, reler, talvez aquilo que muitos vivenciaram por breves momentos ao seu lado, o que muitos vão sentir ao se encontrar em suas crônicas.
Aproveitem, o ‘Bolero de Ravel’ toca para atravessarmos o rio da vida, como corpo de baile, harmônicos ou não, viver não supõe ensaios, dançar é necessidade, ouvir um privilégio, e se encontrar talvez a primeira e última oportunidade. Ler é passagem, passaporte de nossas jornadas, o distante se faz perto, e o perto quase sempre nos serve de acalento, e a última viagem é o roteiro de nossa vida, se deslocando ou não!
*Neuri A. Alves é professor, filósofo pesquisador e assessor de formação e elaboração