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A agricultura familiar em um mundo em transformação: o papel do Brasil diante da crise global e seus desafios

 

(Temática apresentada no IV Congresso da Agricultura Familiar de Santa Catarina)

Por Prof. Dr. Antônio Inácio Andrioli

A agricultura familiar certamente é um dos temas mais atuais do nosso tempo, porque estamos falando daqueles agricultores que vêm produzindo alimentos com o seu próprio trabalho. Duas características importantes a destacar com relação a essa forma de produção são, em primeiro lugar, o fato de, na agricultura familiar, o próprio trabalho da família ser responsável pela geração de valor, ao contrário do que acontece na agricultura patronal, em que há uma relação típica de exploração de trabalho alheio de empregados ou de trabalhadores assalariados. Em segundo lugar, destaca-se que a agricultura familiar é responsável pela maior parte do cultivo de alimentos, que ocorre também pela sua característica de integrar a produção e o consumo. Sabemos que um agricultor familiar, ao mesmo tempo em que cultiva, também consome parte de sua produção, que tem mais qualidade porque ele mesmo usufruirá desse tipo de alimento. Além disso, esse tipo de agricultura permite que o trabalho da família possa ser empregado ou gere valor durante o ano inteiro para que os integrantes também possam se ocupar com várias atividades. Quais são os desafios da agricultura familiar brasileira diante da crise global?

  1. Desafios diante da reestruturação do capital e o seu impacto na agricultura familiar

O maior desafio é a necessidade de superar as monoculturas e a tendência de industrialização da agricultura. A monocultura é um problema para a agricultura familiar, porque, nesta forma de produção, é necessário o trabalho da família gerando valor durante o ano todo. Isso nós também sabemos de alguns autores que abordam essa forma agricultura, como Alexandre Chayanov, um dos primeiros grandes autores que destaca esse conceito. Na Rússia, ele verificou que “os agricultores são sujeitos sociais que não necessariamente foram integrados na lógica do capital ou na lógica que o capitalismo coloca a maioria dos trabalhadores numa situação de exploração”. Alguns autores chegam a caracterizar essa situação como produção pré-capitalista ou, então, como uma parte integrada ao capitalismo e a outra parte ainda não. Isso não significa dizer que a agricultura familiar seja uma produção atrasada ou que não esteja em condições de subsistir, ou inclusive, de funcionar paralelamente à produção capitalista. Mas é importante que se diga que esse tipo de cultivo, pelas suas características, não se trata de uma produção tipicamente capitalista. Por isso, ela até hoje resistiu.

Na agricultura familiar, temos um fenômeno historicamente conhecido como dependência dos trabalhadores em relação a alguns fatores de produção. Sabemos que um problema clássico do trabalho agrícola é a terra ser um recurso limitado, ou seja, não é possível reproduzi-lo. Poderíamos dizer, portanto, que terra não é capital, porque ninguém consegue produzir terra. Os agricultores têm acesso a ela, a esse recurso natural e, a partir dele, conseguem gerar determinada renda. Na economia, isso representa aquilo que se gera de valor no cultivo. Essa dependência se dá em função da natureza, a agricultura é uma atividade dependente da natureza. Se não tivermos condições de solo, de clima, de água, enfim, condições climáticas favoráveis, a base agrícola não existe.

Além disso, no trabalho da família, há uma terceira característica que, em geral, é limitante para os agricultores familiares: o acesso ao crédito. Em função da política agrária e da estrutura agrícola da maioria dos países, os trabalhadores rurais têm limitações de acesso ao crédito ou àquilo que chamamos de capital. A forma como os agricultores familiares têm conseguido acesso ao capital os coloca em uma condição de dependência. Trata-se de uma dependência capitalista, tendo em vista que esses trabalhadores, quando produzem, estão concorrendo entre eles mesmos, e considerando que a superprodução de cereais e de alimentos no mundo faz com que os preços dos produtos agrícolas tendencialmente venham a baixar. Por outro lado, muitas vezes, os agricultores familiares são postos em uma condição de submissão em função do fornecimento de alguns insumos que eles mesmos não podem produzir. As grandes corporações, que poderíamos chamar de corporações agrícolas, ou então, grandes multinacionais do fornecimento de insumos, têm monopolizado o fornecimento destes, inclusive aquilo que costumeiramente chamamos de tecnologia agrícola. Portanto, os agricultores estão confrontados com uma situação de concorrência entre si no mercado internacional com a baixa de preço dos seus produtos e, por outro lado, com o monopólio crescente do fornecimento de insumos.

As duas situações combinadas fazem com que, ao final, o seu trabalho seja menor remunerado. Poderíamos falar, então, de uma nova forma de reestruturação do capital ou de uma nova forma de divisão social do trabalho, na qual a renda gerada a partir da produção agrícola vem sendo transferida para alguns grandes grupos econômicos. Essa é a situação em que nos encontramos e que, historicamente, muitos intelectuais têm apresentado como uma tendência do próprio processo produtivo agrícola capitalista, em que, ao final, sobrariam apenas alguns proprietários de terras e outros seriam meros trabalhadores rurais assalariados.

A agricultura familiar que integra a propriedade da terra e o trabalho teria que se movimentar de uma outra forma dentro dessa lógica. Imaginemos, por exemplo, que o cálculo econômico que um agricultor faz sobre a sua produção é diferenciado em relação à forma como um agricultor patronal o faz. Não somente porque é a própria família que está trabalhando (um capitalista jamais agiria com os seus empregados da mesma forma que pai e mãe agem com filhos e vice-versa), mas também porque são eles mesmos que atuam no processo produtivo. Podemos citar como exemplo o momento em que se aplicam agrotóxicos ou quando há algum tipo de interferência sobre o meio ambiente produtivo. Esse meio ambiente é o espaço onde essas pessoas vivem, portanto, temos uma ligação direta com a forma como se usa a natureza e os problemas ambientais passam a ser problemas sociais na agricultura familiar.

Na agricultura familiar, o cálculo precisa ser diferente da agricultura patronal principalmente porque nesta interessa apenas que o custo de produção de cada unidade seja reduzido. Para fazer essa redução, muitas vezes, os empresários rurais têm utilizado tecnologias que reduzem a força de trabalho necessária para cultivar determinada unidade de produção (uma saca de soja ou de milho, por exemplo). Se o agricultor familiar reduzir o tempo de trabalho necessário para se produzir algo, isso significaria desempregar a si mesmo, ou desempregar seus filhos ou alguém da sua família. Só que isso aconteceria com um agravante: essas mesmas pessoas continuariam consumindo. Se houver consumo sem que o seu trabalho seja remunerado, verifica-se uma condição especial na agricultura familiar: o empobrecimento das famílias. Ou, como alguns autores caracterizam: uma autoexploração, ou seja, aqueles que trabalham precisariam trabalhar mais para sustentar aqueles que somente consomem.

Portanto, na agricultura familiar, interessa muito que o esforço colocado pelos trabalhadores no processo produtivo seja remunerado, e remunerado com um maior valor agregado. Para que essa mudança no valor possa ser feita, certamente, o agricultor precisaria também industrializar a sua produção. Podemos chamar isso de pequena manufatura, ou de pequena forma de industrialização, até as formas mais sofisticadas que também são possíveis, mas isso implicaria em uma organização cooperativa com outros agricultores em uma mesma comunidade. Na agricultura patronal, além de se buscar o aumento da produtividade, em geral, o número de pessoas necessárias para produzir em uma área de terra é menor. No entanto, considerando que o solo não pode ser reproduzido, se um agricultor aumentar a sua área de produção diminuirá a área utilizada pelos vizinhos e vice-versa. A única alternativa lógica a esse problema seria, então, fazer com que o trabalho investido no cultivo tenha mais valor.

Uma das formas possíveis para isso é conseguir agregar valor a essa produção por meio da industrialização e da comercialização. Uma outra forma típica do atual momento e que coloca a agricultura familiar no foco de muitas grandes organizações mundiais (como a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura [FAO], no que se refere à produção de alimentos) seria a possibilidade de os agricultores familiares cultivarem alimentos com maior qualidade, pois isso faz parte das características desse modo de produção. Gerar alimentos com maior qualidade, portanto, interessa mais à agricultura familiar, porque as pessoas que cultivam são as mesmas que consomem. Mas, os alimentos poderiam ser cultivados também com uma melhor relação com o meio ambiente, assim também seriam economizados insumos, que são os fatores limitantes (tudo aquilo que implica investimento de capital). O trabalho da família (que eu chamaria não somente de trabalho, mas também de conhecimento aliado ao trabalho) poderia favorecer o agricultor de tal forma que aquele conhecimento especial seja introduzido para uma produção mais saudável, sendo também mais valorizado pelo consumidor final.

É isso que conseguimos agregando elementos, por exemplo, da agroecologia na agricultura familiar. Pois esta, pelas suas características, por suas necessidades e por suas perspectivas econômica e social possui um maior potencial de incorporar elementos da agroecologia. Essa seria uma forma de fazer com que a produção seja menos dependente de capital externo e de insumos (sobre os quais algumas multinacionais têm o controle monopolizado). No processo produtivo, a agricultura familiar pode introduzir conhecimentos da agroecologia, combinando-os com os conhecimentos tradicionais já existentes. Isso, é claro, implicaria também todo um processo de apropriação de conhecimentos existentes, de valorização de conhecimentos já desenvolvidos e, quem sabe, de construção de novos conhecimentos de forma cooperativa.

Certamente, isso causaria também uma nova forma de considerar a integração dos fatores de produção. Poderíamos considerar, neste caso, uma perspectiva importante para a agricultura familiar que é a chamada pluriatividade, ou então, multifuncionalidade da agricultura familiar. A partir da produção de alimentos, seria integrada a outras atividades econômicas, por exemplo, o turismo, ou então, ao desenvolvimento de conhecimento na atividade agrícola em uma relação diferente com o meio ambiente. Essas diversas atividades integradas, por sua vez, poderiam contribuir para que também, durante o ano inteiro, os agricultores pudessem ter uma melhor ocupação do seu tempo de trabalho. Isso não significa fazer uma apologia ou, então, uma propaganda à maior necessidade de trabalho.

Entendemos o trabalho como a relação dos agricultores com a natureza e com os outros seres humanos (que são parte da natureza) de uma forma mais adaptada àquilo que a natureza consegue nos oferecer em termos de fatores de produção. Isso significa não adaptar simplesmente a natureza ao processo produtivo, mas sim, adaptar o processo produtivo à natureza, e também que os trabalhadores rurais precisariam levar em conta que a natureza pode “trabalhar” para eles. Quem sabe esse seja um conceito novo e que muitos economistas não aceitariam, mas já temos na bibliografia internacional um entendimento de que a natureza pode “trabalhar de graça” para os agricultores, mas não quer dizer que a natureza esteja trabalhando no conceito clássico de trabalho. Na agricultura familiar, é possível produzir de uma forma diferenciada, construindo uma outra relação com a natureza, preservando o meio ambiente e somando mais para o trabalho. Assim, o trabalho da família pode ter mais valor, sem que ele tenha que ser mais penoso.

Esse também é um debate central para a agricultura familiar, porque a penosidade do trabalho não interessa aos agricultores familiares, da mesma forma que ela também não interessa aos agricultores empresariais se o cultivo mais penoso gerar mais custos. No caso da agricultura familiar, teríamos a relação do trabalho penoso com a qualidade de vida da família, de maneira diferente daquela relação da agricultura patronal em que, simplesmente, os custos de produção seriam um agravante e não a penosidade em função do sacrifício de algum empregado ou de um trabalhador assalariado. Nesse tipo de agricultura, a qualidade de vida está diretamente relacionada à forma como o trabalho acontece, como ele se relaciona com a natureza, assim, poderiam ser evitadas determinadas atividades que são resultado de problemas técnicos gerados pelo processo de modernização ou de “industrialização conservadora” da agricultura.

De qualquer forma, como os agricultores familiares são sujeitos que não foram totalmente integrados ao processo de modernização capitalista da agricultura (ou então, alguns sequer chegaram a fazer parte desse processo), há também nisso um novo espaço de mobilização social. Eles poderiam construir uma forma diferenciada de construção igualitária de vida, que causaria, por exemplo, a inexistência ou a falta de necessidade de utilizar determinados insumos, como fertilizantes químicos sintéticos e agrotóxicos. Esses dois elementos introduzidos pela agricultura capitalista colocaram os agricultores em uma situação de dependência e sem sustentabilidade, e já sabemos que, no futuro, a agricultura não pode continuar dependendo desse tipo de produto, porque esses recursos se esgotam. Mas é possível, por meio da interação de animais e de plantas, ou da interação vegetal com a vida animal, evitar determinados problemas técnicos que foram causados exatamente pelo uso dessas substâncias químicas na agricultura.

É possível, por exemplo, trabalhar com uma “agricultura sem inços”, utilizando uma outra compreensão de como as plantas interagem entre si, que é uma forma antiga de conceber essa relação, diferentemente da monocultura. Isso, inclusive, os povos indígenas já sabiam fazer. Na ciência moderna, chamamos isso de alelopatia, ou seja, conseguirmos compreender como plantas se ajudam ou se prejudicam umas às outras, funcionando como herbicidas naturais. O mesmo pode ser feito no que se refere a pragas ou a alguns insetos nocivos para a produção, se tivermos plantas mais saudáveis e evitarmos o cultivo de uma única espécie (o que chamamos de uniformização da produção), podemos reduzir a possibilidade de infestações de pragas, assim como os ataques de doenças.

Pelas experiências com as tecnologias socialmente ou ecologicamente apropriadas, poderíamos reduzir o tempo de trabalho do agricultor familiar necessário ao processo produtivo sem diminuir o valor gerado, mas, para isso, é preciso introduzir mais conhecimento. Teríamos, portanto, uma nova forma de trabalho que agrega valor: a construção de conhecimento para resolver problemas técnicos que o modo de produção tradicional não tem condições de resolver. Então, a agricultura ecológica junto com a agricultura familiar seria a forma mais avançada de cultivo para o futuro. A alternativa é agregar mais valor à essa produção, industrializando-a e colocando-a no mercado de uma forma diferenciada.

Se for possível articular essa relação com o consumidor, certamente teríamos um desenvolvimento de alimentos mais saudável, com alimentos cultivados para o mercado local, em que os agricultores familiares estariam sendo favorecidos pela melhoria de sua qualidade de vida e oferecendo itens para além de suas necessidades. Seriam produzidos alimentos que estariam gerando um mercado regional em condições de aproveitar esse novo nível de qualidade de vida, no qual a agricultura familiar se insere de forma destacada. No contexto da pandemia de covid-19, esse tipo de tese se fortaleceu, especialmente com a maior preocupação com a saúde dos alimentos e com as novas formas de mercado, fortalecidas com as entregas diretamente nas casas dos consumidores.

  1. O desafio de superar os transgênicos e produzir alimentos saudáveis

A questão fundamental que se coloca no debate sobre a produção de alimentos é: por que, como, por quem e para quem eles são produzidos e o que é produzido? Nos últimos anos, vimos que é possível gerar muito dinheiro com isso, cada vez mais e de diferentes maneiras. Uma dessas formas de obter ganhos financeiros com alimentos é conseguir disponibilizá-los a países que têm condições de cultivá-los, mas, colocá-los em tais situações em que a produção naqueles locais seja destruída e que seja gerada uma dependência dos alimentos cultivados por outros. A Europa tem feito muito isso.

Apresento um caso que demonstra o que foi descrito e que é bem polêmico para nós. O frango do Brasil é exportado para a Europa e seus cidadãos comem o peito e as outras partes que os interessam. No entanto, aquilo que eles não querem é enviado de forma gratuita para a África com a alegação de “combater a fome” naquele continente. Esses rejeitos entram na África e destroem a produção local de frangos, porque não há condições de competir com essas “doações” de alimentos. Essa é uma forma de dependência com um certo espírito de solidariedade, ou até, de assistencialismo, como se os europeus estivessem ajudando os países pobres.

Sabemos que, na atualidade, a produção mundial de alimentos é maior do que a capacidade que os seres humanos têm de comer. O nosso problema é fazer com que os 820 milhões de seres humanos que passam fome tenham acesso a essa comida que é, inclusive, muitas vezes destruída para que os preços no mercado internacional não caiam. Estima-se que um terço dos alimentos destinados ao consumo humano, ou seja, 1,3 bilhões de toneladas, são desperdiçados por ano, o que seria o suficiente para alimentar 3 bilhões de pessoas.

Então, a primeira questão importante é entender que é não é por pouca ou pela falta de produtividade de alimentos mundial que enfrentamos o problema da fome. Além disso, temos, pela primeira vez, mais obesos do que famintos e, em geral, podemos afirmar que há 2 bilhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no mundo. No caso do Brasil, são mais de 100 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e, no mínimo, 33 milhões de pessoas passando fome. Isso tudo acontece enquanto produzimos muita soja (mais da metade da área agricultável brasileira, 45 milhões de hectares, um território correspondente à Suécia), que é destinada para alimentar vacas, suínos e bovinos dos europeus, dos norte-americanos, dos chineses, ou para encher seus tanques com biodiesel — agrodiesel eu diria, porque esse diesel não tem nada a ver com bio.

É a destruição da vida por meio da geração de combustíveis para os países ricos. Produzimos soja, café, algodão em excesso, temos monoculturas demais, cujos cultivos não comemos e, além disso, produzimos pouco arroz (que, nos últimos anos, teve sua área de cultivo brasileira reduzida de 28% para 7%), pouco feijão, pouca mandioca. O Brasil acabou importando alimentos com o dinheiro das chamadas divisas do superavit da balança comercial, resultante das agroexportações. Essa é a grande armadilha. Um exemplo bem objetivo dessa situação: o Brasil é o maior produtor de café do mundo, a Alemanha é o maior exportador de café refinado do mundo sem plantar um pé de café. Isso não acontece apenas com o café. É essa a política de dependência, de geração de dependência que nós conhecemos há mais de 500 anos no Brasil.

Então, quando falamos em produção de alimentos, estamos falando também de uma questão política, da soberania alimentar de uma população. Determinadas tecnologias, como a transgenia, têm proporcionado a algumas empresas o poder de se apropriarem de recursos naturais, que deveriam estar à disposição de todos, e de colocá-los a serviço dos lucros de algumas empresas. Estas são as que faturaram com a chamada crise dos alimentos, que é muito mais o resultado de uma especulação do que da falta de comida ou porque alguns povos, como os indianos e os chineses, estariam começando a se alimentar (e até isso é visto como um problema). Então, é claro que existem outros fatores, mas, principalmente a concentração que está havendo no sistema alimentar no mundo tem contribuído para que a fome aumente. No Brasil, isso não quer dizer que essas empresas controlam diretamente a produção de alimentos, mas o que se faz com a terra. Estamos concentrando a terra na mão de algumas empresas que passam a produzir soja, etanol, agrodiesel e celulose.

Esse será o futuro da agricultura brasileira se continuarmos produzindo para as agroexportações. Com isso, geramos mais fome, porque estamos excluindo o acesso à alimentação daqueles que poderiam produzir para alimentarem a si mesmos e que poderiam abastecer os mercados local e regional. Este tipo de agricultura responsável pela alimentação da maior parte das pessoas neste Planeta (em torno de 70% das pessoas do mundo) e que está sendo destruído é a agricultura familiar. É a agricultura que não recebe subsídios da forma como deveria receber.

O debate sobre os subsídios também já é uma questão importante a ser analisada pois, na Europa, quem é subsidiado é o produtor que não precisa desse incentivo. É aquele que, em razão disso, aumenta sua produção de tal forma que, depois, para dar conta dos excessos gerados e para que os preços não baixem no mercado, o governo continua contribuindo para que esses itens entrem no mercado internacional e destruam a produção em outros países, gerando nova dependência.

Com referência ao caso dos transgênicos, que também surgiram com a promessa do combate à fome, é claro que ninguém poderia acreditar que a Monsanto, a Syngenta, a Bayer ou a Basf estariam interessadas em combater a fome. Elas estão interessadas em aumentar o seu poder de controle sobre a produção de alimentos desde a sua gênese, que é a semente. Nunca na história da humanidade se conseguiu um domínio tão grande sobre isso, porque, até hoje, não foi possível determinar, a partir de uma técnica, a apropriação dos resultados dessa tecnologia. Na atualidade, isso é possível, pois a transgenia (e há algumas tecnologias que ainda estão por vir nessa área, como os métodos CRISPR-CAS) é uma técnica que possibilita a algumas empresas o controle, de fato, de qual planta será cultivada, do local onde ela pode ser cultivada, dos tipos de insumos que serão utilizados (os insumos que essas empresas têm a oferecer) e de saber para quem essa comida é produzida.

Temos aí um problema ético, inclusive. Existem alguns intelectuais liberais que não conseguem entender por qual motivo as pessoas pobres não querem comer aquilo que os ricos já disseram que não querem. Os alimentos transgênicos apresentam altos riscos à saúde, enormes consequências ao meio ambiente, enormes problemas sociais que conhecemos nos últimos 20 anos, em que apenas duas formas de transgenia foram liberadas no mercado para cultivo. A planta transgênica é resistente a um herbicida e a determinados insetos. Após 5 anos de cultivo, essas tecnologias passam a perder a sua eficiência porque precisam ser acrescentadas novas condições a elas para que possam continuar sendo eficientes. Há a resistência dos inços ao glifosato, no caso da planta resistente ao herbicida, e há a resistência dos insetos diante da toxina que foi introduzida dentro das plantas, a famosa bactéria bacillus thuringiensis.

A transgenia é uma tecnologia que não deu certo, mas, apesar disso, existe um lobby enorme sobre parlamentos e governos e uma forte pressão da mídia, que atua como um instrumento, um aparato de propaganda à sociedade para fazer com que ela consuma aquilo que não está disposta a consumir, simplesmente porque estão obrigando o agricultor a produzir apenas de uma forma, impedindo outra forma de produção.

Se o agricultor não consegue mais cultivar sem transgênicos, o consumidor não terá mais a possibilidade de escolher o tipo de comida que quer. Portanto, estamos acabando com dois direitos dos seres humanos: o dos agricultores, de produzirem de outras formas; e dos consumidores, de poderem consumir alimentos melhores, mais saudáveis e que não estejam com toxinas ou com resíduos de glifosato. Já sabemos que essas plantas resistentes ao herbicida tem maior probabilidade de apresentar resíduos no produto final. Então, isso significa que cultivamos um grão de pior qualidade, que tem menos rendimento por hectare e que tem mais custos, e que estamos destruindo o meio ambiente, simplesmente porque algumas empresas estão fazendo da produção de alimentos uma forma de enriquecimento de um jeito nunca visto na história da humanidade.

Sabemos que por trás do debate sobre transgênicos está o debate sobre o tipo de agricultura que desejamos, sobre o acesso aos recursos naturais, sobre a Reforma Agrária no Brasil, enfim, sobre a possibilidade de os seres humanos viverem e se alimentarem de uma forma mais saudável. Esse é nosso debate que, com a pandemia de covid-19, só ficou ainda mais intenso, porque explicitou mundialmente as grandes contradições da nossa forma de produzir alimentos.

Há algumas oportunidades nisso que a agricultura familiar poderia aproveitar melhor, não como uma opção, mas como uma necessidade imposta pelo atual contexto. No entanto, um agricultor familiar sozinho não consegue resistir à dominação dos monopólios agroalimentares. Precisamos, com urgência, refletir sobre como contribuir na construção de outras formas de tecnologia e de mercado que não sejam destrutivas ao meio ambiente e à saúde humana. Universidades, institutos de pesquisas, órgãos de extensão rural e assistência técnica podem ser grandes aliados nessa luta! E governos precisam entender que o investimento em agroecologia e produção de alimentos saudáveis é estratégico para a soberania dos povos!

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