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Qual é o caminho para o futuro da Agricultura Familiar?

foto do rosto do professor Valdemar Arl

Alimentos e Agroecologia ou Commodities e “Agronegocinho”

Por Prof. Dr. Valdemar Arl*

 

Contexto

 O momento evidencia crescentes incertezas econômicas, ambientais e sociais, que desafia a reflexões conjunturais, mas sobretudo estruturais. Presenciamos um momento de grande fragilização do “projeto de sociedade” (crise civilizatória), com agravamento da degradação ambiental e riscos com o aquecimento global. No campo amplia-se a concentração e integração entre a agricultura, a produção de insumos, grandes complexos agroindustriais, redes de supermercados e o capital financeiro, exercidos por grandes corporações multinacionais, formando «impérios agroalimentares», que passam a controlar a produção e o consumo, provocando grandes mudanças na agricultura e estrutura agrária no Brasil, tomando fisicamente e ideologicamente os territórios.

A agricultura familiar interage com o modelo estabelecido, ao mesmo tempo busca resistir e opor-se ao mesmo através da construção de outras formas de produção e comercialização e exercendo formas não capitalistas. Mas para aprofundar o tema é preciso inicialmente entender a diversidade deste importante segmento da sociedade brasileira, podendo definir-se como “as agriculturas familiares” e, dado à diversidade existente no campo em função das diferentes condições socioeconômicas, condições ambientais, valores, cultura, perspectivas, e para fugir da dicotomia e reducionismo conceitual sobre agricultura familiar e agricultura camponesa, adota-se a expressão agricultura familiar/camponesa.

O Modelo

O modelo conhecido como revolução verde fazia parte da proposta de desenvolvimento implantada no Brasil nas décadas de 1960 e 1970, pautada no desenvolvimento urbano e industrial. O papel do campo era de fornecer mão de obra para trabalhar na indústria, produzir matéria prima para a agroindústria e comprar insumos da indústria. Isso se chamava de verticalização ou integração da produção direta ou indiretamente.

A proposta para quem ficasse no campo visava a especialização que levou às monoculturas e monocriações, na mecanização pesada e na dependência de insumos externos. O campo era visto apenas como espaço de produção. Associou-se à condição de cidadania à cidade. Grande parte das políticas públicas sociais se voltava exclusivamente para a cidade, como: habitação, saneamento básico, transporte, educação. Estar no campo foi tido como sinônimo de atraso e ignorância. O modelo da revolução verde vendeu a ideia de vantagens aparentes, mas tornou os sistemas lineares e dependentes de insumos externos. Aumentou muito os custos de produção, e proporcionou o êxodo rural. Causou também grande degradação ambiental, como a compactação dos solos, a erosão, a contaminação do meio ambiente, dos alimentos e das pessoas.

A integração também passou e ainda passa por grandes transformações, aumentando a dependência tecnológica, ampliando muito a escala de produção e reduzindo drasticamente o número de famílias integradas. A escala e estrutura necessária para a produção de algumas commodities é tão grande que não cabe numa unidade familiar de produção e vida, levando crescentemente ao arrendamento das terras, como por exemplo nos cultivos de milho e soja.

Da mesma forma em que poucas corporações dominam o campo, também no abastecimento o processo é semelhante. “A industrialização agroalimentar implicou em um processo de substituição dos produtos agrários por produtos industriais que se traduz no desenvolvimento de alimentos fabricados que complementa o processo de apropriação industrial da agricultura já exercido através dos insumos, antes controlados e produzidos pelo agricultor”.  (Goodman  e  Redclift  1991, Friedman, 1991, in Collado et al 2009, p. 2).

A industrialização do processo de produção de alimentos marca o início do crescente distanciamento e desconexão entre a produção e o consumo, e, cada vez mais exercido por algumas grandes corporações, em circuitos cada vez mais longos e globalizados. Cabe agora à “mão invisível” do mercado o abastecimento, e que prioriza produtos que lhe dão mais lucro (as commodities) e produtos menos perecíveis, seja naturalmente ou resistência induzida quimicamente. Essas condições fazem diminuir drasticamente a qualidade biológica, a diversidade, a qualidade nutricional e os sabores dos alimentos. Um exemplo disso são o tomate “longa vida” e os melões “casca dura”, ambos muito inferiores em sabor, mas de longa durabilidade na prateleira, o leite longa vida (“ou longa morte”), assim como outros alimentos altamente bombardeados e até mesmo contaminados com conservantes químicos. Vale considerar que, segundo dados da Anvisa, em torno de 30% dos alimentos já chegam do campo contaminados por agrotóxicos.

No modelo agroindustrial das grandes corporações, além dos aspectos acima descritos, o abastecimento leva “passeio” dos alimentos nas cadeias longas representa custos de transporte e eleva as perdas. Outro aspecto a considerar, é que as grandes corporações não mantêm armazéns estratégicos, onde o armazenamento se vincula apenas à perspectiva de oscilação de preços na safra e a entre safra, para obtenção de maiores lucros, e não para a garantia de suprimento alimentar e muito menos para a sustentação de preços justos, mas sim, impulsionada e impulsionadora da lei da oferta e da procura, buscando lucros ilimitados. A desconexão e distanciamento entre a produção e o consumo desestruturou dietas locais/regionais e acabou o consumo de produtos da época, ambos aspectos culturais e históricos nas dietas dos povos.

Na década de 1990, dado às grandes contradições do modelo e seus efeitos perversos, e sob pressão do Movimento da Agricultura Familiar/camponesa construiu-se uma nova proposta, embora de base compensatória, mas criava algumas condições importantes para sobrevivência e desenvolvimento da agricultura familiar mesmo dentro paradigma do Capitalismo Agrário. Esta proposta visava a adequação ao novo contexto de integração capitalista, e sustentava que as dificuldades são conjunturais e sua superação pode acontecer. Operacionalmente o Estado posicionou-se como regulador e mediador, e dispôs de um grande aporte de políticas públicas exclusivas e direcionadas para Agricultura Familiar. Porém, entende-se que a dificuldade atual da agricultura familiar camponesa é um problema estrutural e que a questão agrária é bem mais complexa. Além de que, tanto a mão forte do Estado, assim como, o aporte de políticas públicas tendem a se fragilizar.

Portanto, é necessária a afirmação de uma nova proposta para o desenvolvimento da Agricultura Familiar/camponesa. Para isso a aproximação e interação entre a produção e consumo são tema é do interesse da população do campo e da cidade e se relaciona com o modelo de produção agropecuária, com a agroindústria, com a indústria, com o tipo de infraestrutura, com o sistema de distribuição e de consumo. Trata-se de rediscutir os objetivos da produção – tipos de produção – base tecnológica – relações no processo de produção – e, as relações entre a produção e consumo, através da reconstrução social dos mercados. Pois, a relação entre produção e consumo de alimentos não pode ser simplesmente alicerçada na perspectiva mercadológica privada com objetivo do lucro, e sim, envolver outras dimensões não capitalistas, como: preço justo, saúde, valorização cultural, respeito ao meio ambiente e ao próximo.

A agroecologia como forma de resistência

Uma das formas de resistência é a agroecologia que, na sua trajetória histórica, desafia a construir uma nova proposta para o campo em contraposição ao modelo agroquímico/ industrial. Incorpora a dimensão sistêmica e holística traduzidas por Sevilla Guzmán e Ottmann (2004) como ecológica e técnico-agronômica; socioeconômica e cultural; e sociopolítica. Mas sobretudo, desafia à superação das relações negativas, para o estabelecimento de interações positivas no meio ambiente e entre as pessoas na sociedade.

O processo de construção da transição agroecológica tem preocupado desde há muito tempo agricultores e técnicos, acerca do melhor caminho, das práticas, técnicas e estratégias mais adequadas a serem adotadas. Frequentemente tem sido questionada em especial sobre a produtividade física dos cultivos e a massividade do processo junto aos agricultores, e têm sido levantadas dúvidas quanto à capacidade desse novo modelo produtivo e tecnológico alimentar a população mundial.

Os questionamentos ao modelo tecnológico da Revolução Verde começam a surgir nos anos 1960 inicialmente com vozes isoladas se manifestando no cenário internacional (CARSON, 1962). No Brasil um movimento de resistência começa a se fortalecer ao final dos anos 1970, com a campanha pela criação da Lei dos Agrotóxicos e no que se irá constituir como o movimento pela Agricultura Alternativa, que nos anos 1980 realiza 4 encontros nacionais multitudinários (EBAAS), gerando uma força social e tecnológica importante, ainda que embrionária, pela agroecologia (LUZZI, 2008).

Os anos 1990 e início de 2000 se caracterizam pela consolidação do movimento Agroecológico, tendo nisso influência das obras de Miguel Altieri e Stephen Gliessmann, que contribuíram para a difusão de uma perspectiva científica de enfrentamento ao modelo cartesiano da Revolução Verde, ainda dominante nas escolas de Agronomia. No Brasil, essa tendência ganha força com a criação de Redes Regionais (Ecovida e outras), entidades nacionais como a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA, com perfil de movimento social) e a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA, de caráter mais científico), e da assunção pelos governos progressistas, de políticas de estímulo à agroecologia – ainda que absolutamente marginais frente ao volume de recursos e prioridade dadas ao agronegócio capitalista.

A agroecologia no Brasil avançou muito desde o início do Movimento pela Agricultura Alternativa da década de 1980, tanto nas iniciativas de produção e organização, na construção do conhecimento envolvendo crescentemente a academia, e também ganhou espaço nas políticas públicas. Contudo, ainda segue avançando? Há uma massificação crescente das experiências? As metodologias e estratégias estão suficientemente adequadas ao momento? Quais são os limites e as contradições que entravam seu desenvolvimento?

As discussões e construções metodológicas e estratégicas para transição agroecológica somam inúmeras experiências e elaborações em grande diversidade de situações. É difícil fazer uma análise crítica que alcance essa amplitude de condições. Vale considerar também que milhares de famílias camponesas ainda praticam uma agricultura independente e integrada ao meio ambiente, que se enquadram numa condição tradicional, bastante próxima de uma possibilidade agroecológica, como base da sua “condição camponesa” (PLOEG, 2008).

Alguns aspectos para uma nova proposta para o campo

Um dos aspectos mais recentes e relevantes que emerge com a institucionalização da agroecologia é o seu crescente enquadramento no “paradigma do capitalismo agrário”, num ajuste conjuntural às tensões do mercado, no exercício da “certificação orgânica” e até mesmo na execução de políticas públicas quando descoladas da formação e organização popular. É o que se convenciona resumir como o embate orgânico x agroecológico. Evidenciam-se tensões e contradições entre o “econegócio” (selos verdes, nicho de mercado, sobrepreço, …), a perspectiva científica (campo de confluência de conhecimentos científicos) e a condição de movimento popular transformador. A superação do paradigma do capitalismo agrário depende de transformações estruturais (meios de produção, regras, normas, etc.) pois meros ajustes conjunturais e compensações não criam condições capazes de transformar a realidade com a profundidade e radicalidade exigidas.

Outro aspecto importante a considerar nos processos de transição agroecológica é a diversidade de compreensões políticas, de condições estruturais e financeiras e até mesmo diversidade de aspectos culturais existentes no campo da agricultura familiar/camponesa que desafiam e impõem diferentes tempos e condições em um possível processo mais massivo de transição. Portanto a proposta que acentua as dicotomias (ou se é agroecológico ou é convencional) e as definições temporais previamente estabelecidas não se aplicam de forma imperativa. Até mesmo a necessária ruptura político-ideológica se dá em diferentes níveis e diferentes tempos, pois as pessoas foram submetidas a diversos processos históricos e são articuladas ou estão relacionadas a sujeitos sociais distintos, muitas vezes com posições contraditórias e até mesmo em campos opostos na disputa ideológica (ainda que não necessariamente na estrutura de classes sociais).

Conclusões e recomendações de pesquisa/desenvolvimento

A agroecologia atualmente se encontra em uma encruzilhada. Está cada vez mais enquadrada pelo agronegócio, sem espaço, sem saída aparente. Constata-se uma evolução constante da produção orgânica (como mercadorias de nicho, porém sem entrar em contradição e enfrentamento com o modelo, antes ao contrário). Isso se dá em certa medida pelo direcionamento de massas crescentes de capitais (ainda que pequenas num primeiro momento) que já conseguem organizar a produção e inserção em mercados, especialmente os de cadeias longas de comercialização. A constatação não é unânime, mas o ponto é o como se alimenta e se reacende o movimento político da agroecologia?

Apesar dos acúmulos históricos na construção científica, estratégica e metodológica da agroecologia, em função da condição do exercício dialético na materialidade dos diferentes tempos/espaços, no momento, diante de “novo ciclo” do capitalismo mundial, somos desafiados a sustentação e resistência estratégica da proposta, mas sobretudo desafiados a uma reelaboração estratégica e requalificação e/ou criação de novos instrumentos e ferramentas, pois as perguntas chaves seguem nos desafiando:

  1. Como desenvolver a transição massiva de agricultores para a agroecologia?
  2. Como responder aos desafios da produtividade dos cultivos em transição?
  3. Como articular processos de construção coletiva, assegurando concomitantemente os aspectos popular e científico, cartesiano e dialético, do conhecimento, como momentos de uma práxis coletiva?
  4. Como articular, mas também superar, a aplicação da ciência cartesiana ao processo de construção da transição agroecológica? Totalidade x Holismo?
  5. Como reagir diante do novo momento de ofensiva do capital na América Latina e no Brasil, em especial frente à apropriação dos bens da natureza (e também da produção orgânica)? quais estratégias adotar? o atual momento das nossas organizações dá conta? quais são as novas ferramentas necessárias?
  6. Queremos só resistir e sobreviver, ou queremos construir um novo modo de produção? Como repensar a apropriação e uso dos meios de produção, desenvolver forças produtivas adequadas e sustentáveis, e estabelecer novas relações sociais?

Diante dessas inquietações quanto à efetividade na transição agroecológica, e dado o contexto recente no país, muitos militantes e educadores populares se desafiam a revisitar a história da construção da agroecologia, com a perspectiva da qualificação/refundação teórica alicerçada em reflexões baseadas no método do Materialismo Dialético Histórico.

 

 *Valdemar Arl é professor, engenheiro agrônomo, especialista, mestre e doutor em Agroecologia.

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